terça-feira, 5 de agosto de 2014

Expurgo








Somos o asqueroso fato que macula a realidade. Somos o asco, a nojenta sensação de sujeira, de demência, de náusea. Somos como o beco urinado, como o sanitário abarrotado. Somos o pênis sujo, os lençóis encharcados de suor azedo. Somos o câncer, a chaga, a ferida... Mornos, como o vômito regurgitado com força. Amargos, como o gosto que deixa na boca. Nas nossas, nenhum beijo, nenhum carinho. Só o acre sabor das palavras de fel! Somos um vazio profundo e letárgico. Um tamborilar de sons irritantes. Somos as pedras nos caminhos e sapatos. A incômoda sensação de desconforto. A dor no peito de um cardíaco, a vontade inata de cagar quando não se pode... Apertamos nossas carnes num espaço inabitável. Esprememo-nos numa realidade que não nos cabe. Mutilamo-nos, desconstruímo-nos, e nos afastamos, ao mesmo passo que nossas partes parecem fundir-se. E somos esse cheiro de carne queimada. Uma carne viva, ensanguentada e pulsante. Somos o último suspiro do moribundo. O oco da cova putrefata. Um caiado sepulcro escuro. A inverdade que impera e o caos. As pessoas que mais se amaram no mundo, e ainda assim, as que, com toda a certeza, menos se amaram.

05/08/2014

quinta-feira, 10 de abril de 2014



“[...] Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente! [...]” (Florbela Espanca)

O que é o amor, para que seja sentido? Sabeis vós? Sabeis dos sintomas febris e agressivos, que indicam essa inebriante doença, quase mortal. Já não mais saudáveis serão os músculos cardíacos ou as válvulas, veias e artérias em seu confortável serviço. Já não serão os mesmos os passos, ou os poemas lidos, ou as canções escutadas, ou as noites bem dormidas. Já não será mesmo o eu, posto que, infectado, um outro "Eu" há de eleger como seu próprio. E para que servirá o ar, ou o alimento, imediatamente fracassados em suas respectivas tarefas de ventilar e alimentar? Mas só disso sabeis. Da essência, disso se nutre o amor. E quando nada mais reste que o alimente, fica o corpo inerme, vazio de si e do outro. Repleto de congestionantes memórias dolorosas. Não, o amor não é Pasárgada. O outro não é sólido terreno para que nele se edifiquem esperanças. O outro é efêmero, o outro é o outro, o outro não é tangível. Enganados sois vós. Vós que acreditais no que não existe. Crente esperança vã na de felicidade eterna amorosa. Nesse mundo, a única certeza é a morte, legado intransponível delegado a todos ao nascerem. O que é a alegria, senão um ligeiro momento entre uma desgraça e outra? O que é o amor, senão um febril estado de espírito? Uma doença da alma, capaz de provocar os piores sofrimentos? Não, inocentes crianças, o amor não apetece, não nutre, não enche, não edifica. O amor vos remove de si, vos perde, vos cega, vos amortece... E após o gozo, o vazio. E nunca mais sereis os mesmos.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Abismo



"Nós nunca nos realizamos.
Somos dois abismos - um poço fitando o céu."
(F. Pessoa)

Eu, uma profunda plenitude escura e quieta a colecionar mistérios invisíveis,
asculto, do mais alto firmamento
os sons da vida que ultrapassam,
a vastidão iluminada e dinâmica.
Um abismo indo para outro abismo,
entreolhando-se infinitos.
E o horizonte é uma ilusão carrasca,
pois não permite contato:
o céu nunca é profunda escuridão.
Você, imponente em seu celeste trono de glórias,
e eu, de escuridão repleta e gasta.
Não há palavra que nos encontre.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Ciclorama



De profundíssimas vastidões cansadas
forma-se um eu tão antigo quanto o universo.
De átomos de longínquas datas
materializa-se um corpo tão cansado quanto o mundo.
E a consciência, nada mais que um sopro,
enche o corpo com um pesar antigo.
Uma existência lamuriosa como o contínuo murmurar de um rio perene: posto que nunca termina.
E nada mais importa, senão o acaso,
oferecendo a oportunidade de renovação, sempre e sempre.
E como uma supernova que explode, o eu decompõe-se em incontáveis particulas,
e reitera-se mais uma vez, e outras mais, para todo o sempre. Amém.

(créditos da imagem: http://jsmuralismo.blogspot.com.br/2010/12/desde-la-tipografia-mas-sencilla-la-mas.html)